(atribulações
de um colecionador português)
No
princípio não era o Verbo...
Podem
achar estranho este início, mas garanto-lhes que é absolutamente
verídico: no principio eu não lia...pela excelente razão de que
não sabia ler! Mas adiante, que esta verdade lapalissiana não
deve interessar a ninguém, por demasiado óbvia.
Depois,
quando me comecei a interessar pelas imagens dos livros da Majora e
pelas revistas da Orbis (editora brasileira que, nos anos 50 (!!!)
traduzia e dava à luz as revistas e personagens americanas), que me
liam, foi a descoberta de um mundo fascinante!
Daí
à aquisição da leitura foi um passo: aprendi a ler com 5 anos e,
quando a minha mãe saía comigo e me perguntava se queria um bolo,
um chupa-chupa ou um livro… bem, adivinhem a resposta!
Continuei
a ler, desta vez os títulos juvenis, ao longo de toda a minha
adolescência. Tive até a duvidosa “honra” de me ser
vedado o acesso aos livros da saudosa coleção Argonauta: um
explicador de matemática que eu tive, senhor de rara
inteli-jumência, descobriu um certo dia que eu tinha “demasiada
imaginação”; por isso, dirigiu-se à biblioteca municipal do
meu bairro e pediu-lhes que não me emprestassem os ditos... Uma vez
que, nessa altura, não havia as campanhas atuais que pretendem
aumentar a imaginação e estimular a leitura entre os jovens, e
sendo que os adultos tinham sempre razão, foi o que eles fizeram. É
claro que arranjei logo um amigo que andava na mesma explicação,
requisitava os livros e mos dava, devolvendo-os pelo mesmo método
(paz à inteli-jumência do homem, que a inteligência propriamente
dita já tinha morrido há muito!).
Tive
depois que ultrapassar outro Cerbero, na forma da minha mãe! Para
ela, existiam duas atividades juvenis: o trabalho, consubstanciado em
estudar o dia todo; e o resto, que incluía brincar, sair e ler.
Claro que, como o dia não dava para tudo e o estudo era para ela
prioritário, as minhas leituras começaram a ficar para trás.
Fui
então obrigado a introduzir em casa livros à socapa; mas ela
começou a revistar-me a mala à entrada. Era então um duelo de
vontades e de imaginações: eu a descobrir processos de meter os
livros em casa (deixá-los no patamar da escada ou na caixa do
correio quando entrava, e ir buscá-los na primeira oportunidade;
metê-los na cintura, da parte de trás; atá-los às pernas e
braços, sob as mangas e as pernas das calças; etc.), ela a
investigar, qual miss Marple… desse por onde desse, eu arranjava
sempre meio de os contrabandear para casa!
Restava
o problema de ler. Como eu tinha aulas logo de manhã, ela queria que
me deitasse cedo, cerca das 10 da noite. Eu deitava-me e, quando tudo
sossegava, acendia a luz e lia finalmente até às tantas! Mas ela
começou a aperceber-se do esquema e a fazer raids ocasionais
para ver se eu dormia mesmo. Eu ouvia-a e apagava a luz, mas ela
apalpava o quebra-luz do candeeiro… como este era de metal, eu era
apanhado, o que me valia uns estalos na cara!
Para
repor a verdade-verdadinha, claro que também lia enquanto devia
estudar… havia uma estante na casa de jantar mesmo ao lado da minha
mesa de estudo, situação que eu aproveitava para ir “consultando”
alguns textos de aventuras naquelas longas tardes da década de 60.
Posso dizer que fui um “leitor clandestino”, o que, à
distancia de cinquenta e tal anos, só aumenta as saudades e valoriza
para mim o ato de ler.
Eu
lia quase tudo. Nessa altura, deixados para trás os juvenis do
costume, como Verne, Salgari, Stevenson, Marryat, já tinha há muito
descoberto as delícias de Hamilton, Heinlein, Bradbury, Sturgeon,
Clarke, eu sei lá o que mais!
Descobri
a coleção Argonauta ainda na década de 50, com 4 ou 5 anos; o
primeiro livro de que recordo a capa é o Sentinelas do Universo
(argonauta nº16, de Eric Frank Russell). Mas nessa altura eu apenas
contemplava as magníficas capas com desenhos de Pires de Lima e
Cândido Costa Pinto...
Não
me lembro quando li Estação de Trânsito, mas foi no volume
duplo comemorativo dos 200 números da coleção Vampiro. Achei-o
interessante, mas nada de especial (essa é ainda a minha opinião,
Simak tem obras muito melhores). Passei depois por uma fase de
desinteresse pela FC (mea culpa, mea maxima culpa...), e só
muuuuuuito mais tarde me voltei a interessar pela mesma (não pela
coleção em si, mas apenas pelos livros que nela me agradavam mais).
Só
recentemente (2013) me mordeu novamente o bicho do colecionismo
literário de FC. Foi dum momento para o outro (tipo coup de
foudre), e levou-me a tentar obter os livros que tinham marcado a
minha infância e juventude. Várias coleções, vários livros
soltos, horas sem fim pelos alfarrabistas, muito dinheiro gasto -
nada lamento! Para mim os livros constituem catalisadores de memória,
trazendo-me de novo algo do que já passou e do que vivi.
Só
muito mais tarde soube que existia uma edição singular do lido
Estação de Trânsito. Que era muito raro, muito difícil de
obter, tão mítico que alguns duvidavam da sua existência (qual
Yeti ou monstro do Loch Ness), rapidamente percebi.
Nessa
altura comecei a busca. Primeiro nos alfarrabistas; a maior parte
nunca tinha ouvido falar disso; alguns confirmaram-me que era um
livro muito raro. Aí
mudei o meu campo de busca para a internet. No OLX encontrei alguns
anúncios, infelizmente já fechados e datando de há anos. Mas
também encontrei o site do meu atual amigo, João Vagos, ele também
um ardente amante de FC e que disponibilizou o video que agora lhes
indico: https://www.youtube.com/watch?time_continue=7&v=hOMRzNEP5wQ
Foi
ele quem me estimulou, indiretamente, a não desistir. Chegado a essa
fase de apetência, nada me faria parar! Passei então a pesquisar o
livro nos sites brasileiros. Encontrei algumas referências aqui e
ali. Contactei então uma amiga brasileira, convenientemente livreira
e prestável, a quem comuniquei a minha pretensão. Ficou com a
referência, e eu com a promessa de me contactar se algo aparecesse.
E
apareceu! Um belo dia, recebo um email a dizer que um cunhado dela,
que tinha colecionado a Argonauta até ao número 300 e tal, queria
vender os livros que possuía, entre os quais o 130 – A!
Confesso
que duvidei. Estava habituado a vários falsos alarmes, e a tratar-se
da edição dupla ou mesmo de mutilações da mesma (a metade FC,
claro). Assim, pedi confirmação por fotografia. E lá me chegou
ela, tratando-se de facto do mito em pessoa!
Dei
imediatamente voz de prisão (perdão, de compra) ao livro, que me
chegou cá por correio especial de corrida (uma pipa de massa!) e faz
atualmente parte destacada da minha biblioteca (protegido por um
envoltório plástico e acompanhado por uma pastilha de cânfora,
para desencorajar o apetite dos peixinhos de prata!). E não contente
com isso, a mesma amiga já me arranjou, por terras de Vera Cruz,
outro exemplar para um amigo de cá! A respetiva foto pode ser vista no portal deste blog. Tchanan!
O
facto de o livro aparecer maioritariamente no Brasil cada vez mais me
convence de que se trata de uma edição feita com cadernos de sobras
do Vampiro nº200 (como se atesta no rodapé dos próprios cadernos
constitutivos), e destinada exclusivamente, por alguma circunstância
editorial, à venda do lado de lá. Se foi assim ou não, ignoro.
Procurei alguém que tivesse trabalhado na edição dos Livros do
Brasil nessa época, mas não encontrei ninguém, toda a gente
reformada ou falecida. Assim, se alguém souber dar mais alguma
informação, chegue-se à frente e fale, ou cale-se para sempre!
(Continua)